Próxima epidemia no Brasil pode ser do vírus mayaro’: entenda a infecção

Após três anos enfrentando o coronavírus, sei que a maioria das pessoas não aguenta mais falar de pandemia, epidemias, surtos de doenças etc. Mas nós, cientistas, nunca podemos deixar de monitorar os vírus que circulam e alertar sobre os perigos que podem trazer para a população.

Por isso, conversei com a Dra Carla Claser, que é imunologista, parasitologista PhD e líder de pesquisa no Instituto de Ciências Biomédicas da USP (Universidade de São Paulo), para esclarecer dúvidas sobre o mayaro, vírus que tem características muito similares ao chikungunya, já circula em regiões urbanas e “pode ser responsável pela próxima epidemia no Brasil”, como disse a própria Dra Claser.

GUSTAVO CABRAL – A pandemia da covid-19 nos mostrou que nunca podemos negligenciar uma doença infectocontagiosa. Falamos pouco do vírus mayaro. Qual a importância de entendermos a virose provocada por ele?

DRA CARLA CLASER – É importante entender que, embora o vírus mayaro seja epidêmico e emergente na região da “Amazônia Legal”, trata-se de uma doença negligenciada, ou seja, que não é muito conhecida pela população brasileira.

Nos últimos anos tem-se observado um aumento da circulação desse vírus, principalmente em regiões urbanas. O que não sabemos é se esse aumento é em virtude da baixa vigilância epidemiológica ou devido à adaptação do vírus ao ciclo urbano.

A escassez de informações quanto à circulação do vírus, fisiopatologia e tratamentos disponíveis enfraquece a infraestrutura do país no combate à doença do vírus mayaro. Acredita-se que a predominância da infecção seja subestimada, devida à extensa circulação de patógenos com quadro clínicos similares, como chikungunya, zika e dengue.

“Muitos virologistas especialistas nessas viroses ressaltam que a próxima epidemia no Brasil pode ser do vírus mayaro e, portanto, torna-se necessário realizar um estudo epidemiológico para definir a real prevalência e incidência do vírus” – Carla Claser, imunologista e parasitologistas

Quais as principais características da doença provocada pelo vírus mayaro? Por que são similares à chikungunya?

DRA CARLA CLASER – Os vírus mayaro e chikungunya possuem alta similaridade, tanto na estrutura viral quanto nos seus genomas. Isso aconteceu decorrente de um salto evolutivo, ou seja, ambos os vírus possuem o mesmo ancestral em comum.

Todos os vírus pertencentes a esse sorogrupo compartilham os mesmos sinais e sintomas, que podem durar meses após a infecção. Os principais são:

  • febre
  • petéquias (manchas avermelhadas)
  • dor de cabeça
  • calafrios
  • inchaço nos tecidos próximos a uma articulação
  • dores musculares e nas articulações

“O fato de esses vírus compartilharem o mesmo complexo antigênico dificulta um diagnóstico preciso e gera ‘falsos-negativos’ para o mayaro, principalmente nas regiões em que também circulam os vírus da chikungunya, dengue e zika”

Como a febre do mayaro é, na maioria das vezes, confundida com febre da dengue ou da chikungunya e o diagnóstico laboratorial só é feito em alguns lugares, dá a impressão errônea de que não há surtos de mayaro nas regiões povoadas do Brasil.

Qual a melhor estratégia de diagnóstico dessas viroses? O Brasil tem condições técnico-científicas para diagnosticar corretamente e diferenciar a febre mayaro da chikungunya?

DRA CARLA CLASER – O Brasil possui conhecimento para o correto diagnóstico laboratorial. Porém, a deficiência na saúde pública em regiões endêmicas torna a infraestrutura limitada.

Devido às similaridades já mencionadas entre o mayaro, chikungunya, zica e dengue, o diagnóstico diferencial é essencial.

Até o momento, o diagnóstico pode ser realizado pela coleta do sangue venoso para a detecção do antígeno, quantificação da carga viral (viremia) por PCR em tempo real (RT-qPCR) ou RT-PCR convencional e isolamento viral em determinado tipo de células que são cultivadas em laboratório. Pode-se realizar também a pesquisa de anticorpos por ELISA ou PRNT (teste de neutralização por redução de placas), verificando se o indivíduo está com a infecção ou se já possui memória imune contra o vírus. No entanto, há desvantagem da ocorrência de reatividade cruzada com outras viroses semelhantes.

Na área da pesquisa, além desses métodos, ensaios como inibição de hemaglutinação são conduzidos para auxiliar na diferenciação dessas viroses semelhantes.

Como você frisou, pesquisas apontam que o vírus da febre de mayaro circula em grandes centros urbanos. Com os dados que temos, podemos afirmar que esse vírus já está adaptado ao meio urbano? Poderia falar um pouco também sobre sua forma de transmissão?

DRA CARLA CLASER – Não podemos afirmar, mas, sim, especular, com base em experimentos laboratoriais, que o mosquito Aedes aegypti também é capaz de transmitir o mayaro.

Estudos recentes de vigilância demonstraram a circulação e dispersão do mayaro em áreas não reportadas previamente, bem como a detecção de infecções em humanos em regiões urbanas, evidenciando um risco potencial de epidemia.

O mayaro é mantido por meio do ciclo de transmissão silvestre, que envolve o mosquito Haemagogus e seu hospedeiro vertebrado, como pequenos mamíferos, pássaros e macacos.

No entanto, foi visto que pode acontecer também o ciclo intermediário, caracterizado pela transmissão em pessoas que visitam áreas endêmicas, que podem exportar o vírus para outras regiões; e o ciclo urbano, onde pode haver a adaptação do vírus a um novo vetor, como o Aedes. Outros mosquitos de gêneros como Culex, Sabethes, Psorophora e Coquillettidia podem atuar nessa amplificação do mayaro em seu ambiente natural.

Não há vacina contra a febre mayaro. Dessa forma, onde devemos colocar os principais esforços para prevenção e combate a essa virose?

DRA CARLA CLASER – O principal foco está no combate à proliferação dos mosquitos. Em áreas endêmicas, é importante o uso de repelentes e de roupas compridas, para a proteger as áreas mais expostas às picadas dos mosquitos (pés, tornozelos, pernas), além de eliminar locais com água parada e utilizar telas (mosquiteiros) em janelas.

Como é o ciclo da doença provocada pelo vírus mayaro? Qual é o seu tratamento?

DRA CARLA CLASER – Infelizmente, ainda não há nenhum tratamento terapêutico ou profilático específico aprovado para uso em humano que seja capaz de combater esses vírus. Medicamentos são utilizados apenas como tratamento paliativo para aliviar os sintomas.

Como o mayaro e chikungunya possuem o mesmo ancestral, compreender as questões evolutivas das doenças é de suma importância, pois a partir delas saberemos quais foram as mudanças evolutivas atribuídas desde o ancestral comum até chegar nas duas espécies diferentes, porém, com características semelhantes.

Montar esse “quebra-cabeça da linha do tempo” pode ajudar na elaboração de metodologias e diagnósticos mais precisos, que consigam distinguir esses vírus que compartilham muitas informações genéticas, diminuindo os casos de “falso-negativos”.

Os sintomas da doença e o desenvolvimento dos vírus no corpo do humano são muito semelhantes. Tanto o mayaro como o chikungunya são considerados vírus artritogênicos, porque causam uma doença inflamatória músculoesquelética em humanos, com sintomas debilitantes como artralgia, artrite e mialgia. A poliartralgia é frequente em 30% a 40% dos pacientes infectados e pode perdurar por anos.

Dessa forma, atentar-se a pontos críticos e ao histórico do paciente é crucial não só para uma anamnese mais fidedigna, como também para um diagnóstico mais preciso, principalmente nos indivíduos infectados com mayaro. A divulgação de trabalhos que trazem essa pauta em meios de comunicação, com uma linguagem simples e sem perder o viés científico sobre transmissão, prevenção e histórico da doença, faz com que a sociedade fique mais atenta e mude pequenos hábitos que impactarão tanto na eficácia do combate à doença quanto na sua epidemiologia.

É possível alguém ser infectado ao mesmo tempo pelo mayaro e pelo chikungunya? Se sim, qual é a reação do nosso corpo nesses casos?

DRA CARLA CLASER – Sim, os casos de coinfecção estão se tornando comuns em áreas em que esses vírus cocirculam.

Desde 2014, a epidemia de chikungunya vem crescendo no Brasil e dados do Ministério da Saúde mostraram um aumento de dez vezes nos casos de suspeita do vírus entre 2015 e 2016, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do país, onde o mayaro é endêmico.

Em 2017, um grupo de pesquisadores, ao analisarem amostras provenientes de um surto de chikungunya que aconteceu em Tocantins, detectaram seis pacientes coinfectados com chikungunya e mayaro.

De um modo geral, a presença de casos de coinfecção aqui no Brasil serve de alerta para mostrar que, durante o surto de chikungunya, o uso exclusivo do parâmetro clínico não é suficiente para diferenciar os dois vírus, uma vez que ambos (isoladamente ou juntos numa coinfecção) causam um quadro clínico similar nos pacientes.

Além disso, alguns grupos de pesquisa mostraram em modelo experimental (camundongos) que a imunidade pré-existente induzida pelo chikungunya é capaz de conferir um certo grau de proteção cruzada contra o mayaro. E essa imunidade pré-existente pode, indiretamente, influenciar nos casos subnotificados de mayaro. Por isso que o projeto de pesquisa que coordeno e desenvolvo junto com minha equipe é tentar entender a coinfecção, utilizando diferentes modelos experimentais (camundongos), e como a resposta imune induzida numa infecção primária pode conferir uma certa proteção cruzada contra uma infecção secundária heteróloga.

Com informações do Viva Bem – UOL